Um culto aos decibéis - revista Veja, 16 de janeiro de 1985
Estúdio da Fluminense FM, 1983. Locutoras Cristina Carvalho, Monika Venerabille e eu.
Convidado pela revista Veja, escrevi este artigo que foi publicado na edição de 16 de janeiro de 1985, seção “Ponto de Vista” – páginas amarelas. Aqui, alterei apenas a divisão dos parágrafos.
Convidado pela revista Veja, escrevi este artigo que foi publicado na edição de 16 de janeiro de 1985, seção “Ponto de Vista” – páginas amarelas. Aqui, alterei apenas a divisão dos parágrafos.
Chegou a hora dessa gente esverdeada mostrar seu valor.
Finalmente a partir de 21 de janeiro, o day after do rock in Rio, o país terá
que conviver com uma estranha tribo. Uma tribo de roqueiros que tem no heavy
metal sua base existencial e a ele se entrega como a um deus urbano e
contemporâneo.
Esses rockers, conhecidos entre nós como metaleiros,
são absolutamente peculiares e vivem uma puberdade conflitante e confusa como
todos os adolescentes. Além de serem discriminados dentro de casa (de certa
forma a causa que os levou ao encontro dos “heavy deuses”), os metaleiros
acabaram sitiados numa caverna onde somente outros metaleiros são capazes de
descobri-los. Dentro do rock eles também são arremessados para o subsolo por
outros roqueiros de outras tribos que veem nos metaleiros apenas um bando de
débeis mentais.
O Brasil, hoje, tem mais de 100 mil desses garotos que
buscam na mais ensurdecedora das guitarras a catarse que muitos barbados
procuram, por exemplo, dentro da psicanálise. Em sua maioria, vivem a margem
das cidades, compondo uma espessa parede de compreensões que acaba
transformando o grito em linguagem e o sangue (artificial) em forma de
expressão.
São amantes da fantasia. Sabem que os integrantes do
Kiss são vegetarianos, não bebem e não se drogam. Mas preferem acreditar num
Kiss que mata pintos sobre o palco, se embebeda sem parar e no final destrói os
hotéis por onde passa. Os metaleiros sabem que os Scorpions vivem com mulheres
e filhos mas preferem vê-los como um grupo que adora jaulas com cobras e
aranhas venenosas, além de intermináveis orgias.
Em bando eles se juntam (só homens) para audições
coletivas de obras fonográficas decibélicas e depois saem as ruas em busca de
filmes de terror ou de qualquer obra do diretor Steven Spielberg, ídolo de
todos, nas telas. E, apesar das pulseiras cheias de pregos e tachinhas, cabelos
enormes, roupas de couro ou curvim, correntes e cadeados espalhados pelos
braços, os metaleiros não são violentos nas ruas.
São porém capazes de tudo dentro de um recinto fechado,
principalmente se ali estiverem se apresentando bandas ao vivo. Se um desses
grupos tocar algo distante do que os metaleiros entendem como rock, não restará
cadeira sobre cadeira.
Cercados entre os tensos e intensos 12 e 18 anos de
idade, os metaleiros querem que o Brasil se dane. Para eles, os políticos não
passam de ladrões, os generais de “canas “ e só comparecem a comícios se os
oradores partirem para o total radicalismo.
Esses garotos, responsáveis pelo sustento-base das
gravadoras (os discos internacionais mais vendidos em todo o mundo são de heavy
metal), não leem jornais, considerados farsas. São alienados profissionais e
acham que uma letra do grupo AC/DC vale mais que um editorial em qualquer
jornal do mundo.
Temem o sexo, optando pela masturbação. Temem a mulher,
optando pelo machismo, que é pregado fartamente nas letras de seus grupos
prediletos. Só não temem três coisas: pai, mãe e polícia. Recentemente o músico
Lobão, do grupo Lobão e os Ronaldos, fez declarações grosseiras sobre os
metaleiros.
Mas não foi só ele quem falou e fala mal dessa tribo.
Muitos músicos de outras facções não cansam de tentar espatifar ou rachar esse
grupo que não acredita em poder. Em contrapartida, parece que, em caso de
vingança as palavras de ordem dos metaleiros são “lata no palco e desprezo nas
ruas”.
Os metaleiros serão muito mais numerosos depois do Rock
in Rio, mas o Brasil não precisa temê-los. Eles só querem rock pesado e uma gravação
pirada no Thin Lizzy. São ou serão eleitores de votos nulos, se drogam pouco
(no máximo maconha) e querem que vá tudo, literalmente, para o inferno. O
inferno para eles é o céu. Parece que o demônio é rei, mas também dentro da
fantasia.
A religião, propriamente, nunca chegou perto dos
metaleiros mais próximos dos rituais hollywoodianos, pintados pelos grupos em
suas músicas. Eles não tem e não querem formar opinião sobre coisa alguma.
Difícil é a situação dos pais desses garotos. Entre um psiquiatra e outro, para
onde costumam arrastar seus metaleiros, acabam, convencidos que esse barulho
todo não passa de uma fase adolescente do roqueiro, que só se eterniza entre os
profissionais e assim mesmo na base da cenografia. Afinal, quando Ozzy Osbourne
enforca anões no palco e arranca cabeças de morcego com os dentes, ele próprio
sabe que isso não passa de uma grande e lucrativa piada.
Só que, no início da
carreira, o grupo ao qual pertenceu se envolvia com magia negra e transcrevia
suas experiências nos discos.
Tentar entender os metaleiros é tentar desvendar
mistérios adolescentes. Eles estão presentes no mundo inteiro, colocando abaixo
promessas e perspectivas e endeusando o que não existe. Acima de tudo, o
movimento cresce pela falta de ídolos universais. Parece mais confortável
acreditar no que não existe dos que nas alianças políticas entre gregos e
troianos ou na inflação de 300%. Em última análise, os metaleiros não fazem mal
a ninguém. Só que também não acreditam em ninguém.
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