Crack : Nada é tão ruim que não possa piorar. Artigo de Antonio Ernesto Martins
Com o lançamento de meu
livro “Sacudindo o Pó da Estrada” e de meu filme “O Brilho”, tenho participado
de palestras, seminários e debates que abordam a questão das drogas, já que
essas duas obras tratam através de linguagens distintas desse mesmo tema, tão
presente na pauta de nossa sociedade. Passados quatro anos nos quais me dediquei
a pesquisar esse assunto a partir da minha experiência pessoal no vício, o
desafio de tentar entender o uso e o abuso de drogas ainda me fascina e me
provoca diversas reflexões.
Desde os primórdios da
civilização a humanidade se relaciona com algum tipo de droga ou alucinógeno, seja
em suas atividades místicas ou religiosas, seja em rituais ou costumes
tradicionais. A partir do movimento da contracultura dos anos 60, o consumo de
drogas tomou ares revolucionários e de contestação, criando vínculo e afinidade
com a juventude que possui em sua essência essas mesmas características.
No Brasil, nessa mesma
época, imperava a ditadura militar que com seus aparelhos repressivos inibia
qualquer tipo de rebeldia ou de transgressão. No entanto, a despeito das
inúmeras políticas de prevenção e de combate às drogas, deflagradas no mundo
inteiro, o consumo e a produção continuaram aumentando vertiginosamente dentro
e fora de nosso país. No final dos anos 70, com a abertura política, a anistia,
o movimento pelas diretas e os ares de liberdade que voltavam a soprar por
nossas terras, cria-se um cenário propício para a ampliação da distribuição de
entorpecentes e entra em cena de maneira mais abrangente uma droga que, até
então, se mantinha elitizada nas classes mais altas e em alguns segmentos artísticos
de vanguarda: a cocaína.
Insuflada no rastro da onda
“disco” que varreu o mundo, a cocaína baixou de preço, aumentou sua oferta e
ofereceu aos consumidores outro tipo de “viagem”. Uma droga urbana, “nervosa”,
extremamente compulsiva e inquieta que, de modo devastador, alterou a rotina dos
jovens consumidores e até mesmo a dos traficantes que a comercializavam,
através de seus efeitos antissociais que inibem não só o sono ou a fome, mas também
as relações de ternura e as conexões com a espiritualidade.
No início dos anos 80 os
jovens entre 17 e 25 anos, entre eles eu, que tinham passado sua infância e
adolescência, amordaçados pelo estado ditatorial, já podiam montar suas bandas
de rock e seus grupos de teatro, externando suas opiniões e críticas a uma
sociedade extremamente injusta e hierarquizada. Nesse cenário a cocaína
conquista diversos adeptos com a falsa promessa de uma disposição inabalável e
um vigor prazeroso e contínuo, que camuflam seu alto poder de criar dependência.
Eu fui um dos cooptados.
No meio disso tudo, um
enorme conflito se estabelece. Um conflito certamente inerente à natureza
humana e travado desde os tempos mais remotos: o conflito do homem com ele
mesmo. Potencializado no conflito do viciado, que vê rapidamente sua vontade
própria se esvair e mergulha numa rotina de escravidão e degradação
existencial. Como isso ocorre, como é feita essa escolha diariamente, como se
comporta essa mente que percebe que está se prejudicando, mas ao mesmo tempo
não consegue conceber sua vida sem a droga são perguntas que ainda hoje
estimulam diversos estudos e pesquisas e que, muito recentemente, conseguiram
inserir no debate da sociedade a ideia da “dependência química” como uma doença
e não como uma deficiência de caráter. No entanto uma significativa parcela da
população ainda encara o problema sobre a ótica tradicional que marginaliza e
criminaliza o usuário.
Muitas outras questões ainda
permanecem obscuras e suas complexidades se acentuaram com a chegada de novas drogas,
as sintéticas e principalmente o crack, e com o amplo debate mundial em torno
da descriminalização e da legalização das drogas hoje consideradas ilícitas.
Debate esse movido pela constatação do total fracasso da chamada guerra contra
as drogas, deflagrada no planeta sob o comando dos EUA.
No Brasil a partir dos anos
90, as crackolandias, inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro,
estampadas nos jornais e na TV revelam imagens fortes de grupos de viciados que
se reúnem a luz do dia e a vista dos passantes para consumir essa droga
derivada da cocaína. O crack oferece a mesmas sensações da cocaína através de
sua combustão e da absorção através dos pulmões, potencializando sua ação e
tornando o consumidor viciado em um curtíssimo espaço de tempo. Seu baixo preço
também é fator primordial para a difusão da droga entre os pobres e o quadro de
dependência dessa droga é de dificílima reversão. Para aqueles, como eu, que
acreditavam ter conhecido na cocaína o estágio máximo da escravidão provocada pelas
drogas, o crack chega para provar que nada é tão ruim que não possa piorar.
Atualmente o crack é
considerado por muitos uma epidemia no Brasil e seus efeitos nefastos alcançam
o interior dos estados, as pequenas cidades e as periferias com a mesma agilidade
que vitimam também os condomínios de classe média alta das grandes capitais. A
necessidade da droga que passa a pautar o comportamento do dependente leva-o a
se desconectar de maneira radical de seus laços afetivos e psicossociais, infringindo
perdas significativas. Rapidamente o usuário está incapacitado de cumprir seus
papeis sociais e se sente impelido em frequentar esses grupos que se reúnem
para o consumo diário e compulsivo da droga.
O crack expõe de maneira
ostensiva aos olhos da sociedade contemporânea o antigo problema da dependência
química e torna visíveis aqueles seres invisíveis aos olhos de uma população
que ajuda a produzi-los. Na lógica
invertida dessa mesma sociedade é a droga e seus consumidores as causas dos
problemas sociais. No entanto, percebemos ao nos aproximarmos dessa população
de usuários, a repetição do padrão de histórias de ruptura de laços de
solidariedade, de desintegração familiar, de segregação social e econômica, de
incapacidade de inserção nos apelos consumistas e diversos outros fatos
geradores que pré existem a droga e criam os espaços vazios propícios para a
utilização da mesma como balsamo reparador de tantas amarguras. A partir da
droga cria-se uma identidade e uma rede de vínculos recíprocos que parecem
amenizar a vida desses cidadãos que foram barrados na festa do capital e do
consumo e não foram tratados como cidadãos pelo estado e pela própria sociedade
que os recrimina.
Os motivos que levam um
indivíduo a se tornar dependente ou não de alguma substância ou comportamento
são inúmeros e diversificados, variando em combinações de acordo com o sujeito,
sua história de vida ou o ambiente que o cerca. Acredito que é hora de
mergulharmos nesse desafio de entender e desvendar as causas e o mecanismo de
construção de um dependente ao invés de simplesmente demonizarmos as drogas e
colocarmos na conta dos dependentes os problemas sociais que nos afligem.
O patrocínio a pesquisas
sérias no campo da neurociência que possam definitivamente esclarecer o impacto
real de cada substancia no cérebro humano e suas consequências também são
urgentes, para desconstruir mitos e tabus e pautar agendas qualificadas de
discussão pública. Iniciativas humanizadoras como a implementada recentemente
pelo programa “Operação de Braços Abertos” da
prefeitura de São Paulo são louváveis, apesar da desastrosa e estranha ação do
Denarc.
Como vemos, esse é um
assunto que está longe de obter um consenso e os questionamentos e reflexões
tanto na esfera pública como particular necessitam se despir de conceitos
estabelecidos previamente para poder atacar o núcleo duro da questão.
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