Porque não consigo pisar num circo
Carequinha (1915-2006)
Texto restaurado e reeditado
Texto restaurado e reeditado
Começo com um trecho da sinopse do livro “O Espetáculo
Mais Triste da terra”, livro de Mauro Ventura:
“No
dia 17 de dezembro de 1961 acontecia, em Niterói, a maior tragédia circense da
história e o pior incêndio com vítimas do Brasil. Mais de 3 mil espectadores, a
maioria crianças, lotavam a matinê do Gran Circo Norte-Americano, anunciado
como o mais famoso da América Latina, quando a trapezista Antonietta
Stevanovich deu o alerta de "fogo!".
Em
menos de dez minutos, as chamas devoraram a lona, justamente no momento em que
o principal hospital da região se encontrava fechado por falta de condições. O
prefeito da cidade estabeleceu em 503 o número oficial de mortos, mas a
contabilidade real nunca será conhecida.
Cinquenta
anos depois, o jornalista Mauro Ventura reconstitui o episódio em 'O Espetáculo
Mais Triste da Terra'. Curto-circuito ou crime? Era a pergunta que todos se
faziam. A polícia logo descobriu um suspeito, mas até que ponto ele era o
verdadeiro culpado ou o bode expiatório ideal para dar satisfações rápidas à
sociedade e encobrir possíveis falhas das autoridades e do dono do circo?
Quatro meses depois da renúncia do presidente Jânio Quadros, o país chegava
novamente às manchetes internacionais.
O
papa mandou celebrar uma missa pelas vítimas e enviou um cheque para ajudar no
tratamento dos sobreviventes. O impacto da tragédia em Niterói, então capital
do estado do Rio de Janeiro, foi tamanho que o assunto permanece encoberto até
hoje.”
Eu tinha seis anos de idade e morava em Angra dos Reis.
Meu pai, oficial de Marinha, serviu no Colégio Naval onde passei toda a minha
infância na vila dos oficiais (que chamávamos de Taperinha) e por isso, somente
por isso, não estava na plateia do Gran Circo Norte-Americano.
Quando as notícias do incêndio chegaram (especialmente
via radio) o país estava chocado. Ouvi meus pais dizerem frases do tipo “graças
a Deus não fomos...” e dias depois, na calada, escondido, vi as fotos em revistas
como Manchete e Fatos & Fotos. Fiquei profundamente abalado e traumatizado.
Fotos de corpos, desolação e, numa página inteira, a foto de um palhaço
chorando.
Quando o filme “O Palhaço” de Selton Mello, estreou,
percebi que o trauma do Gran Circo Norte-Americano não se afastou de mim. Até
hoje, quando vejo um palhaço sinto imediata vontade de chorar. Nos anos 90 tive
a oportunidade de conversar sobre isso com Carequinha (1915-2006), que participava
de um aniversário em casa de amigos.
“Force um pouco, tente ir a um circo”, me dizia o
palhaço-mor de minha vida, para que eu vencesse o trauma. Mas não consegui. Não
consegui, sequer, assistir ao show de Carequinha até o final. Fui para o fundo
do quintal e chorei muito.
Quando minha família saiu de Angra e veio para Niterói,
em 1963, nunca me levou a um circo. Mesmo porque, durante décadas, montar
circos em Niterói era proibido por causa da tragédia do Gran Circo.
Quando estive como presidente da Fundação de Arte de
Niterói (FAN), entre 1989 e 1997, um circo queria montar sua lona na cidade. A
proibição havia sido revogada anos antes. Lembro que, com meu amigo e na época
secretário de cultura Ítalo Campofiorito, exigimos que os donos do circo
incendiassem um pedaço de lona à prova de fogo que eles garantiam ser a
cobertura.
A revista Veja se interessou e marcamos a simulação de
incêndio nas imediações da estação das barcas. O dono do circo pegou um pedaço
de material medindo uns 2 metros quadrados e tacou fogo, garantindo que as
chamas não iriam se alastrar. Não foi o que aconteceu. O pedaço de tecido
lambeu, não sobrou nada e Ítalo e eu proibimos a montagem do circo.
Queria muito ter assistido ao filme do Selton, mas
enquanto não me livrar desse trauma nenhuma atividade circense vai me atrair.
Por isso, decidi comprar e ler o livro do Mauro Ventura. Quem sabe, diante da
verdade, dos fatos, de uma reflexão em cima de fatos consolidados, meu trauma
vai embora? Vou tentar.
Hoje cedo pensei melhor e decidi abandonar o plano por
uma razão muito simples: há coisas na vida que se tornam insuperáveis e a massa
de informações sobre a tragédia me deixou profundamente abalado. O marco de
tudo foi uma foto de página inteira (acho que na extinta revista Manchete) de
um palhaço chorando. Foto em preto e branco.
Hoje vejo meu trauma como luto, solidariedade, enfim,
um sentimento muito mais profundo. Quantas crianças da minha idade (repito, eu
tinha seis anos) teriam morrido? Quantos artistas, gente do povo morreu sem
entender nada? Meu trauma faz sentido e, querem saber?, vou deixar rolar.
Peguei horror a circo e assim vou continuar.
Esqueci de dizer que na segunda metade dos anos 80, em
Friburgo, numa tarde de sábado ou domingo, vi um toldo azul de um circo montado
nas imediações da Praça do Suspiro. Fui me aproximando e vi no cartaz “Hoje,
Egberto Gismonti”. Eu pense “caramba, Egberto?”. Claro que tinha tudo a ver
porque Egberto é de Carmo, cidade vizinha a Friburgo, onde também viveu e deu
aulas de piano na adolescência.
Respirei fundo, comprei o ingresso e fui ver o maior
gênio da música brasileira tocar “Palhaço” no picadeiro. Quase esqueci do Gran
Circo Americano ouvindo essa que é uma das mais belas canções da música
universal. Egberto acabou o concerto, foi muito aplaudido e saiu. Saí junto.
Anos depois, durante a restauração do Teatro Municipal de Niterói, quando eu
estava presidente da Fundação de Arte de Niterói, Claudio Valério Teixeira
(artista plástico e restaurador, responsável pela salvação do Teatro) teve a ideia
de fazer uma temporada musical com a casa ainda em obras. Chamou-se “Temporada
de Obras e ConSertos”, com S.
Egberto foi um dos convidados a tocar. Chegou cedo, por
volta das quatro da tarde e ficamos conversando no galpão da obra que hoje é a
bela Sala Carlos Couto. Perguntei sobre sua música “Palhaço”, e ele disse
exatamente o que está no vídeo cujo link disponibilizo aí embaixo. Morria ali
mais um boato pois haviam me dito que Gismonti teria feito o álbum “Circense”
em homenagem as vítimas do Gran Circo. Nada disso. A explicação está neste
vídeo da TV Cultura:
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