Receita de uma rádio de rock

Extraído da Revista Bizz, número 02 São Paulo, Editora Abril, setembro de 1985.

Montar uma emissora de rock é extremamente mais complicado do que ter uma meia dúzia de bons discos em casa, prontos para serem arremessados de um transmissor qualquer de um morro desses aí. Tanto é que diariamente várias delas saem do ar na internet por falta de competência de seus gestores.

Fazer uma estação de rock envolve, basicamente, conhecimento, intuição e técnicas em doses aritméticas. É preciso ser extremamente técnico. Não adianta ter um desses elementos sem os outros. Só conhecimento musical não define se esta voz é melhor do que aquela para um programa. A intuição, por si só, provoca tolices e conduz à asneira, enquanto que a técnica pura e simples burocratiza até a mais tênue estupidez. Uma rádio de rock que se preze não possui o chamado "listão", o que significa programação permanentemente renovada e dinâmica .

No Brasil, terra onde os conceitos sobe rock vão de um polo ao outro como se tivessem ido ali comprar cigarros, a construção de uma rádio de rock esbarra numa quantidade enorme de problemas. O mercado tem muito medo do rock, muito mesmo. A causa aparente é simples: rock exige conhecimento de causa e não só de números.

O sujeito que está lá programando a última faixa do lado B de um disco irlandês tem de demonstrar firmeza e segurança, enquanto que no outro lado do mundo o publicitário responsável pela distribuição de uma determinada verba tem que entender de comportamento, música e excentricidades em geral para enfiar a tal emissora nos planos.

Normalmente batido pela preguiça (em tese teria que detalhar os relatórios de audiência), ele desloca a verba para uma emissora de perfil mais fácil, mesmo que o retorno seja comprovadamente menor. É incrível, mas há produtos no mercado com nomes extraídos do rock que não são anunciados em rádio de rock. É incrível e muito triste.

Murros em ponta de faca estão no cardápio diário do profissional de uma estação de rock. Ele tem de conviver com uma gama enorme de misturas de ritmos e tendências musicais e uma certa histeria internacional dos ouvintes. Os ouvintes formam feudos e ilhotas e defendem aquilo como se fossem cisternas no Saara. Quando não ouvem um metaleiro, um vanguardeiro, um “sulisteiro” (do rock sulista), telefonam, escrevem, caem de pau. Como é impossível atender a todo o reinado, a pancadaria reina.

Mil a zero - Reina infinita e bela, pois o mais espetacular de uma estação de rock é a resposta de seus ouvintes. Eles reclamam de pronúncia errada, faixa trocada, hora misturada, mas estão sempre ali, cravados no dial, participando. Acima de tudo, conhecem cada milímetro do que estão ouvindo e são incapazes de engolir qualquer tipo de forçação de barra, parta de onde partir.
As compensações são muitas e dão de mil a zero nas dificuldades. 

Especialmente porque quem faz rádio de rock sabe que está lidando com uma música que pulsa sem precisar dizer que pulsa e com uma audiência que detesta firulas, abomina a mediocridade de um linguajar bordado de gírias forçadas e não gosta que ninguém diga "dance", "pule", "ei, que festa, isso tudo é rock'n roll".

A audiência quer uma rádio bem feita. Rápida, objetiva, simples, sem essa de "eu sou mais eu porque sei que David Bowie já foi um andrógino e você não". E o maior segredo de quem faz uma rádio de rock não é deter a maior discoteca do mundo, mas saber conjugar matéria industrial com pensamento, ideia.

Se mexer com rock já é bom, lidar com rádio de rock é melhor ainda. A impressão que temos ao colocar uma música no ar é de que nossas emoções estão sendo democraticamente compartilhadas entre pessoas altamente intuitivas. O feedback é cheio de malícia e a grande vedete nesse tipo de emissora é e sempre será a música. Exemplo: a Eldo Pop, do Rio, já extinta, ficou no ar durante alguns anos sem locução. Os ouvintes tinham de partir para exercícios de pesquisa intermináveis para saberem o que estavam ouvindo.

Sem vedetismos e com muita verdade para dizer, uma rádio de rock não surge, chega; não morre, some. Ela lida com um gênero artístico forte, que mistura um monte de situações que transcendem a música, seguindo a trilha do rock. Ela deve chutar os modismos, procurar não opinar e tentar, sempre, não se defender com falsas delongas. Enfim, fazer uma rádio de rock está diretamente ligado ao bom senso profissional. Profissional com "P" maiúsculo.

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