Relógio Biológico: já tentei acertar o meu para ficar mais próximo da lânguida rotina da humanidade
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Texto de meu livro “Torpedos de Itaipu”, 1995, editora Artware.
São
exatamente 2 e 14 da madrugada quando acordo mansamente, sem sobressaltos. Como
se fosse seis da manhã para um triatleta. Rondo pela casa, ligo a TV e compro
um travesseiro num programa de vendas pelo telefone.
Segundo o anúncio, o tal
travesseiro é um néctar de espuma, capaz de corrigir todos os problemas de ansiedade. O locutor diz que com esse travesseiro temos um sonho “reparador”. Só
não prometeu que acordamos ao som de canários belgas porque a empresa fica em
São Paulo. Garantiu que quem não ficasse satisfeito com o travesseiro teria seu
dinheiro de volta.
Os caras são craques. Duas e 14 de um dia de semana é o
momento ideal para veicular um anúncio de travesseiro. Liguei, passei o número
do cartão de crédito e a mocinha encrencou. Queria colocar Niterói como cidade
do interior do estado, o que significava que eu teria que buscar a encomenda no
correio.
Expliquei a paulistinha que Niterói fica, de barca, a oito quilômetros
do centro do Rio. Ela não entendeu, coitadinha, e acabei comprando o
travesseiro assim mesmo. Vou buscar na agência de correios mais próxima, que
nunca é próxima, quando chegar.
Tem gente que fica muito angustiada quando acorda no
chamado “meio da noite”. Como para mim é rotina, não sinto nada. Apenas a calma
da madrugada, telefones mudos, e-mail calado, tanto que já escrevi até aqui se
interrupção.
Já li e ouvi muito sobre o chamado relógio biológico.
Aparentemente durmo mal, mas uma vez li numa revista de ante-sala que o tipo de
sono que tenho se chama “flash”. Durmo e acordo várias vezes. De fato não é tão
bom quanto o sono sem escalas, aquele que você deita a meia noite e acorda as
oito na mesma posição. Mas o fato das comunicações estarem a minha disposição
de madrugada me trouxe esse vício. Posso dar um giro pela internet sem ser
importunado, sapatear nos satélites, conversar com o Congo. De madrugada tenho
a sensação de que posso fazer tudo porque tudo funciona.
Meu relógio biológico é oportunista e prático. Em geral
durmo cedo sexta e sábado para atravessar o dia seguinte na praia. E praia vou
o ano inteiro porque concluí que não existem praias feias com chuva, com tempo
nublado ou em plena tempestade. As praias são lindas de qualquer jeito. Em
Itaipu quando chove e o vento trás aquela bruma branca ela parece com a costa
da Escócia, que conheço via cinema. Nos dias frios, de céu azul profundo,
lembra a Indonésia. Já sob densa tempestade lembra a capa de “Love Over Gold”,
um dos grandes discos do Dire Straits. É por isso que tenho certeza de que
Itaipu é a mais gostosa das filhas de Ryan.
Não sei se o fato de trabalhar 13 horas por dia
interfere no meu relógio biológico. Há quem diga que isso é estresse. Só que eu
nunca estou estressado, eu sou estressado. Gosto de trabalhar sob pressão, do
desafio dos prazos, e quando perdi meu primeiro computador, cuja placa-mãe
derreteu por causa de não sei o que, fantasiei algo do tipo “nem os
computadores resistem a mim...o ". Quanta babaquice.
Uma vez disseram que sou masoquista, que despendo muita
energia, etc. Só que, em 1985, experimentei ficar sem fazer nada durante três
meses. Larguei tudo. Em menos de 20 dias estava de volta ao jornal, de joelhos,
pedindo perdão. Nunca me senti tão mal na vida. Dormia o dia inteiro, comia
pouco, tinha sonhos melancólicos, porra que depressão! Isso sim é masoquismo.
No dia em que levantei para voltar ao jornal, fui fazer a barba e vi, no
espelho, que estava com aquele semblante típico dos “à toas”. O suor cheira a
naftalina, a cobertor das Casas Pernambucanas.
É evidente que não pretendo fazer apologia do sono
“flash”, da popular e temida insônia. José Maria Monteiro de Barros (saudade
desse meu amigo) me fez observar com calma aves e mamíferos. Fora as criaturas
da noite, todos se recolhem no crepúsculo e se levantam na alvorada. Leio na
enciclopédia do Guiness que os primeiros homens dormiam cedo e acordavam cedo.
O que me assustou no texto foi a média de vida deles: 17 anos.
Essa lenda de relógio biológico só deve ser terrível
para as pessoas que não gostam de dormir de dia ou sofrem amargamente com a
solidão. Quem vira uma noite, no início da carreira, tem que se habituar com
dois sons altamente depressivos: 1) Caminhão de leite; 2 ) Canto dos pardais e
bentevis. Já quem convive mal com o dia e ama a noite é obrigado a engolir
outros dois sons, também tristíssimos, de fim de tarde: 1) Canto de cigarra;
2)Sirene de obra informando que o acabou o expediente. É horrível.
Já tentei acertar meu relógio biológico para ficar mais
próximo da lânguida rotina da humanidade. De 1974 a 1976 trabalhei no horário
das 5 da manhã ao meio dia. Rádio tem dessas coisas. Uma ótima oportunidade
para acertar o tal relógio. Não deu. Chegava em casa, tomava um banho, almoçava
e dormia até as seis da tarde. A noite ia para a gandaia, ou para a faculdade,
que na verdade eram a mesma coisa. Mas pouca coisa foi pior do que uma noite em
que acordei as 3 horas numa pousada na serra da Bocaina, sem luz, sem livros
(ler à luz de velas é terrível) e, ainda por cima, chovendo. Confesso que
sofri. Sofri mais ainda com o barulho de um rio que me deixou alucinado, com
uma estúpida vontade de desligá-lo. Não tem jeito. Sou bicho do mar mesmo.
Em suma, o relógio biológico não é atômico e muito
menos um Rolex. O meu é um paraguaio, desses de camelô. E com licença que já são
quatro da matina e preciso rever “O Pequeno Grande Homem” no DVD. Um filmaço!
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