Relógio biológico: todo mundo tem um

São exatamente 2 e 14 da madrugada quando acordo mansamente, sem sobressaltos como se fosse seis da manhã para um triatleta. Ando pela casa, ligo a TV e compro um travesseiro num programa de vendas pelo telefone. 

Segundo o comercial, o tal travesseiro é um néctar de espuma, capaz de proporcionar um sono mágico. Só não prometeu que acordamos ao som de canários belgas porque a empresa fica em São Paulo. Garantiu que quem não ficasse satisfeito com o travesseiro teria seu dinheiro de volta.

Os caras são craques. Duas e 14 de um dia de semana é o momento ideal para veicular um anúncio de travesseiro. Liguei, passei o número do cartão de crédito e a mocinha encrencou. Queria colocar Niterói como cidade do interior do estado, o que significava que eu teria que buscar a encomenda no correio. Expliquei a paulistinha que Niterói fica, de barca, a oito quilômetros do centro do Rio. Ela não entendeu, coitadinha, e acabei não comprando travesseiro algum.

Tem gente que fica angustiada quando acorda no chamado “meio da noite”. Como para mim é quase rotina, não sinto nada. Apenas a calma da madrugada, telefones mudos, e-mail calado, tanto que já escrevi até aqui se interrupção.

Já li e ouvi muito sobre o chamado relógio biológico. Aparentemente durmo mal, mas uma vez li numa revista de antesala que o tipo de sono que tenho se chama “flash”. Durmo e acordo várias vezes. De fato não é tão bom quanto o sono sem escalas, aquele que você deita a meia noite e acorda as oito na mesma posição. Mas o fato das comunicações estarem a minha disposição de madrugada me trouxe esse vício. Posso dar um giro pela internet sem ser importunado, sapatear nos satélites, conversar com o Congo. De madrugada tenho a sensação de que posso fazer tudo porque tudo funciona. Meu relógio biológico é oportunista e prático.

Não sei se o fato de trabalhar 13 horas por dia interfere no meu relógio biológico. Há quem diga que isso é estresse. Só que eu nunca estou estressado, eu sou estressado. Gosto de trabalhar sob pressão, do desafio dos prazos, e quando perdi meu primeiro computador, cuja placa-mãe derreteu por causa de não sei o que, fantasiei algo do tipo “nem os computadores resistem a mim...”. Quanta palhaçada.

Uma vez disseram que sou masoquista, que despendo muita energia, etc. Só que, em 1985, experimentei ficar sem fazer nada durante três meses. Larguei tudo. Em menos de 20 dias estava de volta ao jornal, de joelhos, pedindo perdão. Nunca me senti tão mal na vida. Dormia o dia inteiro, comia pouco, tinha sonhos melancólicos, que depressão! Isso sim é masoquismo. No dia em que levantei para voltar ao jornal, fui fazer a barba e vi, no espelho, que estava com aquele semblante típico dos “à toas”. O suor cheira a naftalina, a cobertor das Casas Pernambucanas.

É evidente que não pretendo fazer apologia do sono “flash”, da popular e temida insônia. José Maria Monteiro de Barros (saudade desse meu amigo) me fez observar com calma aves e mamíferos. Fora as criaturas da noite, todos se recolhem no crepúsculo e se levantam na alvorada. Leio em algum lugar do Google que os primeiros homens dormiam cedo e acordavam cedo. O que me assustou no texto foi a média de vida deles: 17 anos.

Essa lenda de relógio biológico só deve ser terrível para as pessoas que não gostam de dormir de dia ou sofrem amargamente com a solidão. Quem vira uma noite, no início da carreira, tem que se habituar com dois sons altamente marcantes: 1) Caminhão de leite; 2) Canto dos pardais e bentevis. Já quem convive mal com o dia e ama a noite é obrigado a engolir outros dois sons, também tristíssimos, de fim de tarde: 1) Canto de cigarra; 2) Sirene de obra informando que o acabou o expediente. É horrível.

Já tentei acertar meu relógio biológico para ficar mais próximo da lânguida rotina da humanidade. De 1974 a 1976 trabalhei no horário das 5 da manhã ao meio dia. Rádio tem dessas coisas. Uma ótima oportunidade para acertar o tal relógio. Não deu. Chegava em casa, tomava um banho, almoçava e dormia até as seis da tarde. A noite ia para a gandaia, ou para a faculdade. Mas pouca coisa foi pior do que uma noite em que acordei as 3 horas numa pousada na serra da Bocaina, sem luz, sem livros (ler à luz de velas é terrível) e, ainda por cima, chovendo. Confesso que sofri. Sofri mais ainda com o barulho de um rio que me deixou alucinado, com uma estúpida vontade de desligá-lo. Não tem jeito. Sou bicho do mar mesmo.


Em suma, o relógio biológico não é atômico e muito menos Rolex. O meu é um paraguaio, desses de camelô. E com licença que já são quatro da matina e preciso rever “O Pequeno Grande Homem” no DVD. Um filmaço!

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