A morte precoce de Júlio Cesar Monteiro Martins (1955-2014)









Não pretendo escrever algo triste.

Na tarde de anteontem, 24 de dezembro, a amiga Jussara Simões postou no Facebook a notícia de que nosso amigo de adolescência, Júlio César Monteiro Martins, tinha morrido na Itália, onde vivia há mais de 20 anos.

Em sua coluna de hoje, no Globo, Ancelmo Góis publicou:

‘Sabe quem dançou?’

Na véspera deste Natal, após longa doença, morreu na Itália, aos 58 anos, o escritor Julio Cesar Monteiro Martins, nascido e criado em Niterói, autor de “Torpalium” e “Sabe quem dançou?”.

Romancista, contista, roteirista, ele deixou o Brasil há mais de 20 anos e lecionou em várias universidades estrangeiras. Radicou-se na Itália.

Era professor de Literatura na universidade de Lucca e, desde 1996, dirigia a Scuola Sagarana, editando a revista literária do mesmo nome.

Conheci o Júlio na adolescência. Estudávamos juntos no Instituto Abel, em Niterói, onde ingressamos, ambos, aos 11 anos em 1966. Uns dois ou três anos depois nos tornamos amigos e, de cara, percebi que Júlio era um cara genial, extremamente culto, alimentava um ego do tamanho do universo e, ao mesmo tempo, tinha um humor sarcástico, cáustico, uma generosidade rara.

Foi no Abel que ele ganhou o apelido que iria acompanhá-lo para sempre no colégio. Certa vez, inflamado e gesticulando muito (como sempre) Júlio disse que era descendente de um barão. Pronto, o apelido Barão baixou naquele momento e o seguiu até acabar o seu período de Abel. Até hoje muita gente o chama de Barão e uma vez ele me disse que gostava do apelido.

O tempo foi passando e a sua casa na rua Pereira da Silva, em Icaraí, transformou-se numa espécie de bunker de criação dos militantes da chamada cultura marginal. Júlio era muito mais engajado politicamente do que nós, todos nós, seus amigos, na época com 15, 16 anos, mais interessados em festas, balões, futebol, tocar rock and roll. Rock and roll que Júlio chamava, não carinhosamente, de “estrume musical”. Ele gostava de Chico Buarque e companhia e ficava enfurecido por nós mantermos distância dos movimentos políticos ocultos que ocorriam no auge da ditadura militar. Falo de 1968, 69, 70, 71, 72...Chumbo muito grosso.

Foi nesse período que Júlio escreveu e dirigiu dois filmes. Um em 16 milímetros  chamou-se “Transfusão”, onde o meu amigo externou toda a influência que Glauber Rocha e o pessoal do Cinema Novo, mais a Nouvelle Vague francesa (Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Jacques Rivette, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Agnès Varda) exerceram sobre ele.

Em “Transfusão”, trabalhei como ator (vejam vocês). Júlio dizia, acidamente, que eu tinha um perfil primitivo (um jeitão de me chamar de imbecil, que eu fingia não entender) e por isso fiz o papel de assassino. Um assassino que (faltou faca na filmagem) dava golpes de chave de fenda numa melancia imaginando estar matando alguém.

Cada vez que a chave de fenda era cravada, uma pessoa morria. Essas cenas foram filmadas na casa que a mãe de Júlio, a saudosa dona Selma (professora de doutorado em Literatura, acho que na UFF), em Piratininga, na época um deserto areal. Sob um inclemente sol de 41 graus, Júlio César Monteiro Martins atuava vestindo um casacão de lã grossa, comprado em Paris, que ia até os tornozelos. Que figuraça!

“Transfusão” sumiu. Júlio me garantiu, ao longo dos anos, que o filme não estava com ele. O pior de tudo é que eu e todo o elenco não chegamos a ver a obra finalizada. Há quem diga que uma cópia foi feita e não está perdida. Está com alguém. Logo, apelo aqui na internet: se alguém está com essa cópia, por favor entre em contato porque quero homenagear meu amigo exibindo o filme em DVD em algum lugar.

Um outro filme dele (esse inacabado) chamou-se “Encostado pelo Instituto”, a história de um homem aposentado por loucura (Fuad Jorge Hajjat lembra bem, eu fiz papel de enfermeiro) que toda a vez que passava mal chamavam a ambulância. A ambulância era uma Variant 1972 branca de meu pai que eu dirigia, descia com uma maca improvisada e dopava o encostado com uma injeção na veia. Soube que o filme foi interrompido por problemas políticos (enfiar o cacete na previdência, na ditadura, era um problema político) e Júlio acabou cedendo. Parou.

Um cara genial. Era sim. Um de seus primeiros livros chamou-se “Torpalium” (mistura de torpe com Valium, ele me explicou) que era o estado de anestesia geral do Brasil diante da ditadura, milagre econômico e aquela farsa toda. 

Depois escreveu “Sabe quem dançou?”, que por pouco não o levou para a cadeia, segundo me disse depois o pessoal do Pasquim (onde trabalhei de 1975 a 1979) já que o livro foi editado pela editora do jornal a Codecri. Outros livros de Júlio, em desordem cronológica: “As Forças Desarmadas”, “Artérias e Becos”, Histórias de um novo tempo”, “O Espaço Imaginário”, “O Oeste de Nada”. A boa notícia é que todos esses livros podem ser comprados no site Estante Virtual, em www.estantevirtual.com.br.

Presidente da Ceia (grêmio estudantil do Abel) na virada dos anos 1960 para 1970 (ou teria sido mais adiante?) eleito em eleição direta, Júlio fez um discurso antológico na posse, mas a maioria não entendeu o que ele disse. Alguns adultos comentaram que ele tinha “ideias de comunista”. Assinava todos os documentos com seu nome na íntegra, Júlio César Monteiro Martins e, por isso, perguntei uma vez “por que você não usa Júlio Martins, ou Júlio César Martins?” e ele respondeu na lata “porque eu me adoro, e logo, adoro meu nome”. Não era fácil esse meu fantástico amigo.

Em 1976 fundamos um jornal. Eu, Jorge Alberto Xavier, o Jajá, (ex-editor aposentado do Estadão) que foi um mestre para todos nós, Márcio Paulo Maia Tavares e, é lógico, ele, Júlio Cesar Monteiro Martins. Escrevo, afirmo, testemunho sem o menor constrangimento que o Setedias em sua primeira fase (no número zero ao número 10) foi o melhor semanário que Niterói já teve. 

No artigo de estreia, que malandramente Júlio mandou entregar no dia do fechamento da primeira edição (não havia computador, nem e-mail, texto escrito a máquina) me enfureci quando li o título: “Memórias Prévias de Júlio César Monteiro Martins”. Ele escreveu um texto sobre ele mesmo no futuro, eu xinguei, chutei a parede e (lamentavelmente porque hoje eu queria ler o que ele previa para si próprio, quase 40 anos atrás) rasguei o artigo. No dia seguinte fui à casa dele a fim de lhe enfiar a porrada.

A essa altura ele morava numa bucólica vila na rua Tavares de Macedo, em Icaraí, e não quis abrir o portão de ferro. De pijama, jornal na mão, apareceu na varanda, óculos no nariz e percebeu minhas péssimas intenções: “Você parece um mandril enfurecido... além do mais estou lendo meu jornal. Passar bem”. Bateu o portão na minha cara. Hahahahaha, Júlio.

Querem saber? Ele tinha razão. Júlio César Monteiro Martins era um cara do cacete, um gênio, um intelectual, tudo precoce, muito precoce. Até a sua morte foi precoce, mas a sua urgência existencial dá um sentido especial a tudo isso.

A última vez que o encontrei foi no início dos anos 1990, numa padaria em Icaraí. Falamos rapidamente, ele disse que estava vivendo na Itália. Não nos vimos mais. Aqui, o depoimento de alguns amigos que pesquei no Facebook:

Jussara Simões (em 24 de dezembro) - 2014 é um ano que não acaba mais! Acabo de receber a notícia do falecimento do meu amigo Júlio Cesar Monteiro Martins, grande escritor, que decidiu se mudar para a Itália há uns 30 anos e, depois disso, só nos falávamos por escrito. Este ano está muito difícil e agora ainda termina com a morte de um amigo querido, niteroiense amado.
Vai em paz, meu querido! Vou guardar comigo a imagem do nosso primeiro encontro em 1970, quando éramos jovens e sonhadores.

Aqui está a carta da Alessandra, esposa dele, em português:

Queridos amigos,

Hoje Julio decidiu nos deixar. Estava na hora, despediu-se tranquilo. Foi em paz, lúcido, protegido pelo amor da família e dos amigos, sem sofrimento. Decidiu adormecer, entrando devagarinho no sono eterno.

Enfrentou a doença como guerreiro que era, com coragem, sem poupar forças, com fé. A sua fé laica sempre foi aquela das esperanças, porque ele era mesmo assim: um homem que sabia contar-se uma realidade mais feliz, um homem que voava e imaginava coisas bonitas.

A nós que sobrevivemos resta a missão de proteger e fazer crescer em saúde seus filhos amados. Minha parte será cuidar dos filhos humanos. A vocês peço o favor de cuidarem dos diversos filhos de papel e Arte gerados por ele, assim Julio continuará presente entre nós.

A ele, meu companheiro por dez anos, meu marido, pai de Beatrice, prometi o último presente: uma celebração com todos os amigos ao lado dele. Uma festa, porque os brasileiros amam as festas e Julio mesmo neste aspecto era deliciosamente brasileiro.

Sei que diversos amigos brasileiros, americanos, portugueses, franceses, alemães moram longe, para eles será difícil participar à celebração em memória de Julio. Assim, através destas linhas mando também a eles lembranças e carinho.

Um abraço bem apertado a todos. Sei que Julio não fará falta apenas a mim.

Com afeto, Alessandra.

Elaine Lima -  Eu o conheci de perto, ainda menina, éramos vizinhos na Pereira da Silva, depois foi amigo de Nelson no Abel. Sempre se destacou pela inteligência e cultura, já naquela época! Sabia que ele vivia na Itália há muitos anos. Tô sentida.

Jardel Junior - Luiz Antonio, lembro bem da história dos filmes, ele ainda morava naquela vila da Tavares de Macedo, se não me engano, quando estive as primeiras vezes com o Julio, com certeza através de você. Tempo bom. Abraço.

Ildo Nascimento - Julio me apresentou ao pessoal da editora Codecri, de O Pasquim. Figura muito inteligente, em uma ocasião enfrentou a ira do empresário niteroiense - dono de jornal de bairro - por ter publicado o artigo "Rumos e desvios da cultura brasileira", em nada menos que 6 páginas... Ju Rigoni, Délcio Teobaldo devem lembrar do episódio.

Délcio Teobaldo - Me lembro sim, Ildo Nascimento, deste texto no Setedias e daquela vez que coube a mim "editar", na verdade verdade cortar um conto do Júlio para caber numa página do jornal. Ele era de um perfeccionismo assustador. Um dia chegou o Jajá e avacalhou esteticamente toda aquela história. Obrigado pela lembrança, Jardel Junior.

Tereza Dutrain - Que desagradável!

Fuad Jorge Hajjat - Quanto ao filme "Encostado pelo Instituto" participei como câmera. Julio era o ator principal e Luiz Antonio Mello também participava como ator. Lembro de uma das cenas a qual foi filmada na casa de Julio na Rua Pereira da Siva: Luiz Antonio fazia o papel de um enfermeiro que dirigia a ambulância (uma VW Variant branca de seu pai). Na cena o Julio fazia o personagem do aposentado tendo um surto.

Chegávamos na ambulância interrompendo o trânsito e resgatávamos o Julio em surto com uma boneca no colo e com uma maquiagem que o envelhecia. As pessoas e vizinhos não entendiam nada. Depois fizemos uma cena em um jogo no Maracanã; se não me engano era um Fla X Flu com estádio cheio.

Julio em seu personagem de pijama e com sua boneca no colo, Quando surtando, aparece o enfermeiro de jaleco branco (Luiz Antonio) e o resgatava; para surpresa do público. Julio começou a usar terno bem jovem e assistia suas aulas no Abel vestido assim. Eu comentava com ele: Julio que roupa e esta? Ele respondia que ainda ia me ver trabalhando de terno em um escritório. Realmente isto não aconteceu...

Não via Julio a algum tempo. Por circunstâncias da vida, a minha profissão de arquiteto me deixou um pouco mais perto de Julio; Elaborei o projeto e a execução da obra de cobertura do apartamento de seu irmão... Saudoso Julio. Inteligente, culto e com humor refinado. Gostaria que me visse vestido assim: como artista visual em uma exposição a qual realizei...

Renato de LucaCaro amigo Luiz Antonio Mello li suas palavras no seu blog, acerca da morte precoce do nosso amigo de sempre, o “Barão”, como nós carinhosamente o chamávamos. Realmente vc lembrou passagens marcantes e maravilhosas daquela época do ABEL, todas vividas intensamente ! E sua colocação acerca da genialidade e personalidade do Julio foram perfeitas. Eu
também fiquei muito triste e surpreso, pois estes dias, num encontro da turma da época, no sítio do Paulo Galindo, nos lembramos muito dessas passagens, e falou-se até de uma ida a Itália encontra-lo...

Tenho algumas considerações para acrescentar, pois fui diretor cultural da CEIA 1971, da qual o Julio foi presidente, e participei muito intensamente dos encontros, para não dizer, “estadias” na “Toca do Julio”, na sua casa da Pereira da Silva ! Eram verdadeiras maratonas da contra cultura niteroiense, normalmente acompanhadas de visitas a cinematecas, cineclubes ou teatros, no
Rio, onde tínhamos contato com filmes dos cineastas que você citou, principalmente do Cinema Novo, e acrescentaria os do Cinema Marginal brasileiro, Sganzerla, Ivan Cardoso, Bressane, Neville D`Almeida, Luiz Rosemberg, Sergio Santeiro, dentre outros.

E para acrescentar , também o cinema italiano,Visconti, Antonioni, Pasolini e em especial, Fellini. Ao retornar dessas “peregrinações
udigrudi”, os debates na Toca eram acalorados, sempre assessorados com quitutes que Dona Selma preparava, preocupadíssima com sua saúde, pois Julio detestava
ser interrompido !

Muitos dos encontros, seguiam-se após as aulas do Abel, e
adentravam até a noite ! Neste ambiente foram surgindo as ideias de ativarmos um Cineclube no Abel, e o embrião de produzirmos alguns curtas, com o apoio da CEIA. Como sua gestão estava por terminar (71), tivemos a ideia de darmos prosseguimento a uma CEIA cultural, que incentivaria esses projetos e a criação
de outros, e a maneira viabiliza-los. Enfim, invertemos as posições: me candidatei a presidência, levantamos essas ideias dentre outras, junto aos alunos, montamos uma chapa bem estruturada, com o apoio do saudoso Hélvio Quintão como vice, a CEIA 1972. Resultado, fui eleito, o Julio ficou como diretor cultural, e realizamos, junto com toda a diretoria, uma das gestões mais
empreendedoras de grêmio secundarista em Niterói, mesmo com toda a repressão que sofremos.
Em relação ao projeto Trans-Fusão, realizado em co-direção, conseguimos uma câmera 16mm, emprestada do Aécio Nanci, fomos ao Rio comprar 3 rolos de filme 16mm reversível, e algumas lâmpadas, pois era o que o dinheiro dava...chamamos o também saudoso Amilse Branco, para fazer o som, com aquele
gravador de rolo gigante. Convidamos a Marina Loureiro, atriz do Grupo de Teatro da CEIA, na peça Arena Conta Zumbi.
Ela fazia a personagem hippie, contraponto com o Intelectual (Julio) e o Surfista (LAM). Como você mesmo lembrou, as filmagens foram totalmente surrealistas, e lembro uma passagem, em que o grupo tinha que caminhar pelo areal, seguir um pequeno caminho, e entrar na varanda da casa, em três tempos de luz reais....amanhecer, entardecer, e noite (na varanda). Na chega da
varanda, com todas as luzes armadas em tripé, tudo testado, fotometrado, luzes ligadas, e.... o irmão pequeno do Julio, brincando, tropeça, nos fios, e todas se quebram !!! A reação do Julio é que teria que ser filmada.... Palavrões ecoando na noite desértica e quente de Piratininga ! O Trans-Fusão infelizmente não seguiu adiante, parou nos tais três rolos, por falta de grana, e na dificuldade de organizar a produção novamente. Ainda tentamos, mas como foi o ultimo ano nosso no Abel, perdemos contato, e ficou difícil organizar. Fizemos uma exibição dos rolos originais, no Abel, no salão nobre, pois lá tinha projetor 16mm, o
operador era seu Irineu. Divulgamos para a equipe, que podemos entrar em contato. O Julio estava lá . Mas, quando a nossa gestão acabou, ouve uma mudança, inclusive na sede da CEIA, e na mudança, os rolos estavam “esquecidos” “jogados” num canto, no chão...ai me perguntaram o que faz com isso ?
A BOA NOTÍCIA ! Luiz Antonio, os rolos originais, colados em
sequencia, estão guardados, e acredito que ainda tenham imagens que possamos copia-los !!! Não existe outra cópia. As imagens, falo com franqueza, são bem ruins, pois a câmera de foco fixo, nem os filmes que dispúnhamos faziam milagres. Faz uns três ou quatro anos, a Marina esteve em minha casa, e mandamos um email para o Julio, falando a respeito, ele respondeu, e achou interessante a ideia, mas depois não tivemos mais contato.
Para o início de 2015, vou procurar um laboratório sério para fazer um restauro e uma copiagem para arquivo digital. Eu também estou ansioso de poder ver essas imagens !
Em tempo: hoje a nossa Turma do Abel 1973, esta combinando, aos que puderem, um encontro no Bar Chalé, por volta das 10h, para uma homenagem ao Julio. Um grande abraço e um 2015 repleto de realizações ! Pagina da Turma do Abel 1973.

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