Porque o filme 50 Tons de Cinza é execrado pelo público

 
    De Olhos bem Fechados
    50 Tons de Cinza


A crítica está sentando o bambu e o público chuta o filme “50 Tons de Cinza” nas redes sociais. Adaptado do primeiro volume da trilogia best-seller escrita por E.L. James, o filme estreou por esses dias com a direção de Sam Taylor-Johnson e mostra a sexualidade humana (ela mesma, enigmática, desafiadora, fabulosa) como uma daquelas quitinete chulas descritas por escritores de nona categoria.

Um preconceituoso crítico inglês classificou a obra como “erótica para vovós” (como se vovós fossem assexuadas!) e nas redes sociais o que mais leio são críticas, sarrafadas, bofetadas, chamando de tolice a manobra industrial hollywoodiana que tentou arrastar para a tela taras e perversões nascidas na cama. Só que dentro dos limites morais do mercado, a tal reserva moral hipócrita e levemente canalha que acaba transformando a tal proposta tórrida num balde de éter, típico dos filmecos cartesianos, sem pegada, sem levada, enfim, o popular easy money mesmo.

Não vou criticar detalhadamente o filme nem o livro porque não assisti e não li, mas conheço muito bem o apito desse trem que tanto tem irritado as massas que vão ao cinema para assistir ao prometido espetáculo de sexo circense incendiário, como garante a publicidade Não li este livro, não assisti a este filme, mas conheço a receita do mainstream, vulgo esquemão, que só se importa com o faturamento, salas lotadas. 

Certo, o diretor poderia ter ido mais fundo, ousado mais (dizem que o livro tem alguns momentos interessantes), mas aí ele corria o risco de cair na armadilha dos moralistas de plantão. E quando o moralismo resolve condenar e enforcar/fuzilar “filmes malditos”, especialmente agora em tempos politicamente corretos, a bilheteria vai por água abaixo.

A indignada reação popular aponta que o fracasso de “50 Tons de Cinza” está diretamente relacionado aquela lógica antiga que dita as normas das tensíssimas relações entre a literatura e o cinema. Um livro cria personagens, situações, cenas, atitudes que cada leitor projeta como quiser. Eu tenho uma Capitu que, provavelmente nada tem a ver com a sua Capitu e muito menos com a de seu criador, Machado de Assis, autor do clássico Dom Casmurro. Cada um tem a sua Capitu, o seu Escobar, o seu Bentinho. Quando uma obra é transportada para o cinema, cabe aos roteiristas mostrar e não mostrar, induzir e não induzir, enfim, não podem exibir o que o livro, propositalmente, mantém na penumbra.

O desejo, o erotismo, a libido, são sentimentos/sensações extremamente pessoais e, na maioria dos casos, ocultos. Cada um elabora suas fantasias, canaliza seus desejos por caminhos que, em geral, não são compartilhados publicamente. É um mundo quase blindado que, diz psicanálise, quanto mais reprimido mais pervertido (no mau sentido) pode se tornar. Afinal, se há algo que une os antagônicos Freud, Jung e Lacan é a velha constatação: quem tem problemas sexuais é mais suscetível as neuroses. Se qualquer estudante de psicologia sabe disso, o que dirá diretores de cinema.

Todos nós nascemos com desejos, fantasias, ideações sexuais intransferíveis. Voltando a psicanálise, ela afirma que a “cabeça aberta” não causa danos a sociedade, ao contrário do que prega moralismo extremo, fábrica de pervertidos (do mal), criminosos, pedófilos e outras moléstias. Os nazistas eram pervertidos ao máximo, como, em geral, todos aqueles que clamam aos berros por moral e bons costumes. Essas pessoas temem que seus próprios desejos acabem imperando e, por isso, resolvem condenar previamente o planeta. É mais fácil fuzilar o mundo do que calar o pensamento.

Existem vários filmes eróticos que atingiram seus objetivos. Entre eles um ponto em comum: a coragem. Sem vulgaridade, colocaram em via pública os tabus, os conceitos e preconceitos que norteiam o sexo desde o início dos tempos. Um desses filmes, o japonês “O Império dos Sentidos”, de 1976 (assisti em pré-estreia), dirigido por Nagisa Oshima ultrapassou todas as barreiras até atingir o temido ápice, o confronto do desejo com a morte. O filme é forte, ousado, gerou enorme polêmica na época mas atingiu os seus objetivos. Não foi um campeão de bilheteria, não ganhou Oscar, mas confrontou nossos dilemas.

Em 1999, o filme “De Olhos bem Fechados” de Stanley Kubrick visitou outros escaninhos dos desejos sexuais enrustidos do ser humano. Estrelado por Tom Cruise e Nicole Kidman, o filme é baseado no conto “Traumnovelle”, de Arthur Schnitzler, que li por acaso com uma namorada dos tempos de faculdade. Lemos e nos assustamos muito. Não com o conto, mas quando nos flagramos atraídos pela trama de Schnitzler.
Stanley Kubrick morreu cinco dias depois de entregar o filme pronto a Warner Brothers. Uma trama sombria, muito forte, que mexe com desejos quase proibidos que, diz a ciência, habitam todos nós. Ao transformar as facetas proibidas do desejo em convites tentadores para os personagens e, também, os espectadores, o filme atinge o seu objetivo maior que é o de exercitar nossas contradições eróticas.

Há muitos outros exemplos de como a libido humana pode ser abordada honestamente (sem hipocrisia) pelo cinema. “50 Tons de Cinza” pode ter errado ao tornar óbvias questões/situações com o único objetivo de faturar. Daí estar sendo visto como obra superficial, fútil, ridícula por pessoas que pagaram e entraram no cinema para ver ousadia. Por isso, pode ter caído no deboche, na classificação preconceituosa de “erotismo para vovós” - Anais Nin e Henry Miller mostram que há vovós que deixam adolescentes no chinelo.

O sexo sempre foi, é e vai continuar sendo um grande tabu para a espécie humana. Nesse tabu, reside o seu poder de sedução e prazer. Tentar torná-lo acessível a todos usando linguagem direta (ou chula/burra) é cair no atoleiro. Mitos e tabus não perdoam, matam. No caso, o filme “50 Tons de Cinza”.

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