Pou!, mau humor!

Durante uns anos fui freguês de um comedouro nas imediações. Distraído, olhando e pensando em outras coisas, fingi que não sabia o quanto era mal tratado naquele negócio. Gente mal humorada distribuindo coices pelas baias de fregueses pacatos, cansados, arregados, entre eles eu. Para piorar, o negócio aumentava o preço dos seus produtos à galega, de acordo com o (mau) humor dos donos.

Há seis meses entrei e dei boa tarde. Uma funcionária, com um bico de pica pau na cara, não respondeu. Dei boa tarde mais duas vezes e nada. Perguntei se um produto do comedouro tinha sido feito há pouco tempo e ela respondeu “é, mas tem que pagar as torradas avulso”. Rebati “avulsas, minha filha. Avulsas!”. Saí e fui para um outro curral, no mesmo comedouro. Outra funcionária, tromba à mostra, bico de avestruz. Dei boa tarde, nada. Boa tarde segunda vez, resposta: “vai querer o que?”. Saí prometendo a mim mesmo não voltar mais, o que de fato aconteceu. Muitas vezes demoro, o saco inflama, arde, pela, mas quando torra adeus.

Minha alma levemente babaca atura quase tudo da humanidade, menos mau humor. Flagelo universal, o mau humor pode ter feito D. Pedro I gritar “independência ou morte” na margem do Rio Ipiranga, mas hoje a história revista mostra que é pura cascata. Acometido de violenta diarreia, o imperador nada disse, nada gritou, mas fez a independência, sim. Era mal humorado, detestava banho, fedia, e, dizem as lendas, pegava até as éguas na Quinta da Boa Vista, mas quando se sentia de tromba sumia de circulação. Tinha consideração com os outros mortais.

Uma pessoa de mau humor não deveria sair de casa. Ou sair e ficar quieta. Um amigo tem duas filhas, 20 e poucos anos, propensas ao mau humor, que moram com a mãe, também mal humorada meio crônica. Ele já combinou com as filhas que quando estivessem de bico, avisassem para ele não aparecer. Como não é de lata, o amigo retribui sumindo quando o mau humor o pega de jeito. Um conhecido diz que o bico, ou bicão/bocão/tromba, é um quadro comum entre os mal humorados. Ele me conta que “quando estou mal humorado, chego em casa, pego o cachorro, ponho na coleira e saio para passear infinitamente noite adentro.” Aliás, se existe um ser perfeito neste planeta, este ser é o cachorro. Fome, frio, doença, calor, calor, calor, nada tira o cão de seu bom humor.


Passando em frente ao tal comedouro que abriu esse texto, sinto um certo alívio. Não voltei mais lá, optando por outros comedouros bem mais civilizados, educados, respeitosos. Ninguém é obrigado a aturar mau humor, seja pago, seja grátis, seja de que forma for. Por mais que, eventualmente, haja pedregulhos em nossa trilha existencial, e isso gere frustração e mau humor, ninguém tem nada com isso.

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